segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Não me conformo em nunca ter ouvido falar de Nice Firmeza e seu fiel companheiro e também artista, Estrigas.Obrigada , Zah! Meus sinceros agradecimentos ao Dr. Gilmar, amigo do meu querido Zah, por nos enriquecer mais e mais com suas pesquisas.


UM TRÍPTICO PARA NICE FIRMEZA

O PONTO DO BORDADO


Tudo começou no Patronato do Aracati. A menina Maria deu um jeito de driblar a vigilância da mãe e se inscrever no curso de bordado. Era a semente de uma rebeldia que levaria pela vida afora, de uma inquietação que a encaminharia para a arte.
O bordado era a possibilidade de dar forma, de maneira lúdica, a um mundo de agulhas,dedais, bastidores, linhas de todas as cores, de aprender os pontos e de inventar outros. Pode ser visto como brincadeira e campo de batalha, onde se desenvolveria uma luta entre criação e cópia, liberdade e disciplina, invenção e risco (s).
Nice saiu da escola. A mãe descobriu a “malinação”, mas o bordado se incorporou à sua vida como exercício de liberdade. Ele se insinuou  e foi ganhando espaço, debaixo das mangueiras, do sítio do Mondubim.
Coerente, ela sempre estimulou a invenção e só, a contragosto, rabiscava alguns desenhos para serem bordados. Ela queria mesmo ver eram aqueles bordados tremulando nos corpos e aqueles alunos usando linhas, texturas, e matizados, ramos e flores, símiles da natureza que, no nosso caso, é sonho a se concretizar na laçada.
Com o tempo, as blusas bordadas pela Nice ganharam "status" de grife. E logo se formaram grupos de alunas e aluno (Francisco Sousa) que se reunia às quintas, no espaço da Evelucia, na Aldeota, e aos sábados no sítio. O bordado tornou-se um estilo, formou escola e ultrapassou a mera habilidade para ganhar o estatuto de arte, nestes tempos de incômodo com o que é feito em série, com o que nem sempre pode sofrer a interferência de uma customização.
O bordado de Nice tem a mesma estatura dos “parangolés”, arte para ser usada, com os quais Hélio Oiticica envolvia passistas da Mangueira, para suas performances.Pode ser pensado como algo digno para se vestir e se estar diante de Deus, como os mantos de Artur Bispo do Rosário.
Dialoga com os bordados de Leonilson, na fase em que o artista expressava poesia e angústia, por meio das linhas, numa grafia minimalista e contundente. As roupas da Nice fazem contraponto com as de Louise Bourgeois, expostas como esculturas.


A grandeza dos bordados da Nice ainda está por ser avaliada e reconhecida. Relembro a mostra que incluía algumas peças, na galeria Vicente Leite, da FA7, e a emoção de ver blusas sendo usadas, ganhando outros sentidos, na medida em que os corpos se agitavam e as composições saiam do estático das gavetas para se misturarem à vida, ao suor, como uma linguagem expressiva. Essas blusas são ousadas, porque não são datadas, extrapolam as limitações do mercado e instauram uma primavera atemporal.
O bordado de Nice não é artesanato, assume a categoria da expressão artística “antenada” com a contemporaneidade. Isso dá a dimensão de sua importância.


A ALQUIMIA DA COZINHA


Os doces entraram na vida da Nice, de forma mais efetiva, com o casamento com Estrigas, e a mudança para o sítio do Mondubim, na companhia da sogra, dona Bárbara.
Vieram para fazer com que as frutas não se estragassem e pudessem ser consumidas por mais tempo. Essa ideia de evitar desperdícios é um traço comum às culturas. No Mondubim, as frutas eram a matéria prima para essa alquimia.
Os doces servidos aos que visitavam o Mini-Museu, variados e inusitados,eram servidos aos poucos, mostrando a diversidade e indicando os frutos daquela estação.
Os pratinhos, lindos e atraentes, buscavam conseguir uma simetria, em meio a pontos e texturas diferenciadas. A recomendação, ao que estava sendo iniciado naquele ritual, de misturar, ousar, fazer as combinações mais inusitadas, levava a que usassem a mesa com a mesma liberdade com que Nice, e a escudeira Dona Anita, pilotavam os fogões da cozinha.
Assim, tínhamos o doce de coco verde, o de leite (ambrosia), o de caju em massa, o de caju inteiro, de goiabas, de bananas, e casca de laranja da terra, de siriguela (muios pensavam, que se tratava de ameixa), de melancia e de estrelas de carambolas. Dava dó começar a comer, de tão delicada a arrumação, mas o desafio para a obtenção de novos sabores deveria ser seguido à risca.
Um acepipe feito em dias especiais ocupava mais tempo, dava mais trabalho e mais prazer: o pé de moleque.O ritual se iniciava,alguns dias antes dele ser servido, com a ida da Nice ao Mercado São Sebastião, onde comprava massa puba, castanha de caju, rapadura preta, erva-doce, gengibre.
A volta à casa era uma festa, com as providências que antecipavam a delícia que misturava tradição indígena com herança africana. A carimã, colocada num saco de tecido, seria lavada incontáveis vezes, a castanha triturada, e a rapadura derretida se transformaria em mel. O leite de coco seria extraído no calor da hora.
Um segredo era não preparar o bolo no dia em que seria servido, mas na véspera. Dava muito trabalho misturar aquilo tudo na bacia, verificar se tudo estava no ponto. Nice sabia a receita de oitiva, no olho, sem cadernos e sem balanças, pela experiência de quem fazia o pé de moleque poucas vezes ao ano, mas com atenção redobrada.
Mexido à mão, ia para o tabuleiro, forrado com palha de bananeira, guarnecido pelas castanhas inteiras de caju, e para o forno já quente, inundando a cozinha com aquele cheiro inconfundível, um dos índices para se ter ideia se quando se iniciava o cozimento, ou quando deveria ser posto para assar. 
A experiência de tê-lo comido é única. Não era um bolo, era o pé de moleque da Nice, com a excelência de tudo o que ela tocava e fazia. Um patrimônio “imaterial” (?) do povo cearense.


O LEGADO

As narrativas da Nice, debaixo das mangueiras, no sítio do Mondubim, insistiam na direção da criação. Em relação à arte, a cópia sempre lhe provocou um grande mal-estar. Foi assim que ela começou a desafiar as freiras do Aracati, nas aulas de artes, quando recusava o modelo e fazia sua tradução livre. A semente da rebeldia seria a primeira marca da artista.
Ela foi desaconselhada a desenhar ou a pintar e até castigada pela transgressão. Veio a adolescência, a visita de um pintor de Fortaleza, e a tela que mostrava a torre da Igreja do Bonfim, um trecho do Jaguaribe e do casario de Aracati. Pode-se pensar nessa tela (acervo Oswaldo e Angela Gutierrez) como o marco inaugural de sua trajetória.
Vieram marinhas de Canoa Quebrada, dunas da Majorlândia e Nice logo veio estudar em Fortaleza. Aqui, se envolveu com o pessoal da Sociedade Cearense das Artes Plásticas (SCAP), no início dos anos 1950. Teve aulas, participou dos ateliês coletivos e fez parte das excursões à periferia da cidade (Montese) e às praias (Poço da Draga), em companhia de outros artistas, para essa aventura de tentar captar nossa luz.
A ligação com Estrigas foi fundamental nesse processo. Jovem artista, Nilo de Brito Firmeza, seria o companheiro da vida inteira, o interlocutor, com quem podia ler em conjunto, discutir os rumos do que cada um faria, mantendo a personalidade, sem interferências de qualquer ordem (clonagens, pastiches, diluições) no trabalho do outro.
Nice foi construindo sua trajetória. Ela é uma figura importante na história das artes plásticas cearenses do século XX. Pode-se falar de seu pioneirismo (dividido com Heloysa Juaçaba) e de sua contribuição, no que se refere à questão de gênero, em um tempo em que caberia às mulheres tarefas pouco criativas neste campo das artes.
Nice transgrediu, foi à luta e deixou suas marcas. Pode-se falar não na incorporação de um clichê, mas da materialização do feminino, na sua série das crianças, um dos temas mais recorrentes de sua obra. "Máscaras da Infância", título de uma de suas exposições (Galeria Alliance Française, São Paulo, 1993), mostra áreas de sombra, de dor e de angústia, na ruptura do estereótipo prevalecente da infância idílica.
Nice construiu uma obra, com coerência e densidade.Fez óleo, guache sobre papel, acrílica sobre tela. Sua pintura nunca foi decorativa, trazia as marcas de uma artista que sofreu, soube traduzir o que viveu e tentou recriar o mundo.

Levou a experiência do bordado para as mandalas, exercício geométrico e poético, como um mantra visual. Interferiu em um catálogo do Mini-Museu. Manteve até o fim a inquietude, uma das marcas do artista e também a possibilidade do devaneio. Sempre saberemos reconhecer um trabalho da Nice, não apenas pela assinatura, mas pela vida que impregnou tudo o que ela fez, com determinação, disciplina e a garra dos que se entregam, por inteiro, às escolhas feitas.
Fecha-se o verbete Nice Firmeza e abre-se a chance de uma fruição sem limites. Em tempos de perplexidade, quebra dos paradigmas, e pouco barulho por nada, importa avaliar o legado de Nice Firmeza e agradecer tudo o que ela nos deixou, marcas de arte e traços de luz.

Foto: Diário do Nordeste


Gilmar Carvalho 
Especial para o Caderno 3


Gilmar de Carvalho é  advogado e jornalista e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 1998.Pesquisador apaixonado por cultura popular, tem grande importância no cenário literário e  cultural brasileiro. 
Começou como ficcionista (Pluralia Tantum, 1973) e teve peças de teatro encenadas (Orixás do Ceará). Cearense de Sobral, largou a ficção em  Tem vários livros publicados , entre eles : Autor de Publicidade em Cordel (São Paulo: Maltese, 1994);Madeira Matriz (São Paulo: Annablume, 1999); Patativa do Assaré (Fortaleza: FDR, 2000); Patativa Poeta Pássaro do Assaré (Fortaleza: Omni, 2002), Desenho Gráfico Popular (São Paulo: IEB/USP, 2000); dentre outros trabalhos acadêmicos. Tem artigos publicados em revistas do Brasil e do exterior. Como ficcionista, publicouPluralia Tantum (Fortaleza: Grecel, 1973); Parabelum (Fortaleza: Greel, 1977);Queima de Arquivo (Fortaleza: Secult, 1983); Resto de Munição (Fortaleza: Secult, 1984); Buick Frenesi (Fortaleza: Secult, 1985); e Pequenas Histórias de Crueldade(Fortaleza: Secult, 1987),entre outros. Deixa a ficção em 1987 e parte para edições com ampla pesquisa de cunho nordestino.Apaixonado pela cultura regionalista , nunca deixou de lado a preocupação com o contexto histórico-político-social do Brasil.

Autor prolífico, Gilmar de Carvalho ficou mais conhecido por sua não-ficção "Parabélum" que é a publicação mais famosa de sua fase literária. Em 2011, faz o relançamento .Precisava recuperar sua obra mais preciosa. Conta que ao procurar o livro, não encontrara mais nem em sebos e desejava muito que outras pessoas tivessem acesso ao livro. Como nota do escritor paulista João Silvério Trevisan na apresentação, o título reproduz a pistola de Lampião, uma parabelum 97. A inscrição vem de um provérbio latino: si vis pacem, para bellum (“se queres a paz, prepara a guerra”). Nas mãos de Gilmar, a arma não destrói. Lançando agora, apenas constrói. . 
Incansável pesquisador , lança agora seu mais recente trabalho:  "A lira do poeta Expedito" dedicado ao poeta Expedito Sebastião da Silva, ele mesmo um tipografo, responsável pela casa São Francisco que imprimiu, dentre outros autores, o canônico Patativa do Assaré.

Fontes: 
Diário do Nordeste; armazemcultura.com; www.onordeste.com ; martinsfontespaulista.com