UM
TRÍPTICO PARA NICE FIRMEZA
O
PONTO DO BORDADO
Tudo começou no
Patronato do Aracati. A menina Maria deu um jeito de driblar a vigilância da
mãe e se inscrever no curso de bordado. Era a semente de uma rebeldia que
levaria pela vida afora, de uma inquietação que a encaminharia para a arte.
O bordado era a
possibilidade de dar forma, de maneira lúdica, a um mundo de agulhas,dedais,
bastidores, linhas de todas as cores, de aprender os pontos e de inventar outros.
Pode ser visto como brincadeira e campo de batalha, onde se desenvolveria uma
luta entre criação e cópia, liberdade e disciplina, invenção e risco (s).
Nice saiu da escola. A
mãe descobriu a “malinação”, mas o bordado se incorporou à sua vida como
exercício de liberdade. Ele se insinuou e
foi ganhando espaço, debaixo das mangueiras, do sítio do Mondubim.
Coerente, ela sempre
estimulou a invenção e só, a contragosto, rabiscava alguns desenhos para serem
bordados. Ela queria mesmo ver eram aqueles bordados tremulando nos corpos e
aqueles alunos usando linhas, texturas, e matizados, ramos e flores, símiles da
natureza que, no nosso caso, é sonho a se concretizar na laçada.
Com o tempo, as blusas
bordadas pela Nice ganharam "status" de grife. E logo se formaram
grupos de alunas e aluno (Francisco Sousa) que se reunia às quintas, no espaço
da Evelucia, na Aldeota, e aos sábados no sítio. O bordado tornou-se um estilo,
formou escola e ultrapassou a mera habilidade para ganhar o estatuto de arte,
nestes tempos de incômodo com o que é feito em série, com o que nem sempre pode
sofrer a interferência de uma customização.
O bordado de Nice tem a
mesma estatura dos “parangolés”, arte para ser usada, com os quais Hélio
Oiticica envolvia passistas da Mangueira, para suas performances.Pode ser
pensado como algo digno para se vestir e se estar diante de Deus, como os
mantos de Artur Bispo do Rosário.
Dialoga com os bordados
de Leonilson, na fase em que o artista expressava poesia e angústia, por meio
das linhas, numa grafia minimalista e contundente. As roupas da Nice fazem
contraponto com as de Louise Bourgeois, expostas como esculturas.
A grandeza dos bordados
da Nice ainda está por ser avaliada e reconhecida. Relembro a mostra que
incluía algumas peças, na galeria Vicente Leite, da FA7, e a emoção de ver blusas
sendo usadas, ganhando outros sentidos, na medida em que os corpos se agitavam
e as composições saiam do estático das gavetas para se misturarem à vida, ao suor,
como uma linguagem expressiva. Essas blusas são ousadas, porque não são
datadas, extrapolam as limitações do mercado e instauram uma primavera
atemporal.
O bordado de Nice não é
artesanato, assume a categoria da expressão artística “antenada” com a
contemporaneidade. Isso dá a dimensão de sua importância.
A
ALQUIMIA DA COZINHA
Os doces entraram na
vida da Nice, de forma mais efetiva, com o casamento com Estrigas, e a mudança para
o sítio do Mondubim, na companhia da sogra, dona Bárbara.
Vieram para fazer com
que as frutas não se estragassem e pudessem ser consumidas por mais tempo. Essa
ideia de evitar desperdícios é um traço comum às culturas. No Mondubim, as
frutas eram a matéria prima para essa alquimia.
Os doces servidos aos
que visitavam o Mini-Museu, variados e inusitados,eram servidos aos poucos,
mostrando a diversidade e indicando os frutos daquela estação.
Os pratinhos, lindos e atraentes,
buscavam conseguir uma simetria, em meio a pontos e texturas diferenciadas. A recomendação,
ao que estava sendo iniciado naquele ritual, de misturar, ousar, fazer as
combinações mais inusitadas, levava a que usassem a mesa com a mesma liberdade
com que Nice, e a escudeira Dona Anita, pilotavam os fogões da cozinha.
Assim, tínhamos o doce
de coco verde, o de leite (ambrosia), o de caju em massa, o de caju inteiro, de
goiabas, de bananas, e casca de laranja da terra, de siriguela (muios pensavam,
que se tratava de ameixa), de melancia e de estrelas de carambolas. Dava dó
começar a comer, de tão delicada a arrumação, mas o desafio para a obtenção de
novos sabores deveria ser seguido à risca.
Um acepipe feito em
dias especiais ocupava mais tempo, dava mais trabalho e mais prazer: o pé de
moleque.O ritual se iniciava,alguns dias antes dele ser servido, com a ida da
Nice ao Mercado São Sebastião, onde comprava massa puba, castanha de caju,
rapadura preta, erva-doce, gengibre.
A volta à casa era uma
festa, com as providências que antecipavam a delícia que misturava tradição
indígena com herança africana. A carimã, colocada num saco de tecido, seria
lavada incontáveis vezes, a castanha triturada, e a rapadura derretida se
transformaria em mel. O leite de coco seria extraído no calor da hora.
Um segredo era não
preparar o bolo no dia em que seria servido, mas na véspera. Dava muito
trabalho misturar aquilo tudo na bacia, verificar se tudo estava no ponto. Nice
sabia a receita de oitiva, no olho, sem cadernos e sem balanças, pela
experiência de quem fazia o pé de moleque poucas vezes ao ano, mas com atenção
redobrada.
Mexido à mão, ia para o
tabuleiro, forrado com palha de bananeira, guarnecido pelas castanhas inteiras
de caju, e para o forno já quente, inundando a cozinha com aquele cheiro inconfundível,
um dos índices para se ter ideia se quando se iniciava o cozimento, ou quando deveria
ser posto para assar.
A experiência de tê-lo
comido é única. Não era um bolo, era o pé de moleque da Nice, com a excelência
de tudo o que ela tocava e fazia. Um patrimônio “imaterial” (?) do povo
cearense.
O
LEGADO
As narrativas da Nice,
debaixo das mangueiras, no sítio do Mondubim, insistiam na direção da criação. Em
relação à arte, a cópia sempre lhe provocou um grande mal-estar. Foi assim que
ela começou a desafiar as freiras do Aracati, nas aulas de artes, quando
recusava o modelo e fazia sua tradução livre. A semente da rebeldia seria a
primeira marca da artista.
Ela foi desaconselhada
a desenhar ou a pintar e até castigada pela transgressão. Veio a adolescência,
a visita de um pintor de Fortaleza, e a tela que mostrava a torre da Igreja do
Bonfim, um trecho do Jaguaribe e do casario de Aracati. Pode-se pensar nessa
tela (acervo Oswaldo e Angela Gutierrez) como o marco inaugural de sua
trajetória.
Vieram marinhas de
Canoa Quebrada, dunas da Majorlândia e Nice logo veio estudar em Fortaleza.
Aqui, se envolveu com o pessoal da Sociedade Cearense das Artes Plásticas
(SCAP), no início dos anos 1950. Teve aulas, participou dos ateliês coletivos e
fez parte das excursões à periferia da cidade (Montese) e às praias (Poço da
Draga), em companhia de outros artistas, para essa aventura de tentar captar
nossa luz.
A ligação com Estrigas
foi fundamental nesse processo. Jovem artista, Nilo de Brito Firmeza, seria o companheiro
da vida inteira, o interlocutor, com quem podia ler em conjunto, discutir os
rumos do que cada um faria, mantendo a personalidade, sem interferências de
qualquer ordem (clonagens, pastiches, diluições) no trabalho do outro.
Nice foi construindo
sua trajetória. Ela é uma figura importante na história das artes plásticas
cearenses do século XX. Pode-se falar de seu pioneirismo (dividido com Heloysa Juaçaba)
e de sua contribuição, no que se refere à questão de gênero, em um tempo em que
caberia às mulheres tarefas pouco criativas neste campo das artes.
Nice transgrediu, foi à
luta e deixou suas marcas. Pode-se falar não na incorporação de um clichê, mas
da materialização do feminino, na sua série das crianças, um dos temas mais
recorrentes de sua obra. "Máscaras da Infância", título de uma de
suas exposições (Galeria Alliance Française, São Paulo, 1993), mostra áreas de
sombra, de dor e de angústia, na ruptura do estereótipo prevalecente da
infância idílica.
Nice construiu uma
obra, com coerência e densidade.Fez óleo, guache sobre papel, acrílica sobre
tela. Sua pintura nunca foi decorativa, trazia as marcas de uma artista que
sofreu, soube traduzir o que viveu e tentou recriar o mundo.
Levou a experiência do
bordado para as mandalas, exercício geométrico e poético, como um mantra visual.
Interferiu em um catálogo do Mini-Museu. Manteve até o fim a inquietude, uma
das marcas do artista e também a possibilidade do devaneio. Sempre saberemos reconhecer
um trabalho da Nice, não apenas pela assinatura, mas pela vida que impregnou
tudo o que ela fez, com determinação, disciplina e a garra dos que se entregam,
por inteiro, às escolhas feitas.
Fecha-se o verbete Nice
Firmeza e abre-se a chance de uma fruição sem limites. Em tempos de
perplexidade, quebra dos paradigmas, e pouco barulho por nada, importa avaliar
o legado de Nice Firmeza e agradecer tudo o que ela nos deixou, marcas de arte
e traços de luz.
Foto: Diário do Nordeste
Gilmar Carvalho
Gilmar de Carvalho é advogado e jornalista e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 1998.Pesquisador apaixonado por cultura popular, tem grande importância no cenário literário e cultural brasileiro.
Começou como ficcionista (Pluralia Tantum, 1973) e teve peças de teatro encenadas (Orixás do Ceará). Cearense de Sobral, largou a ficção em Tem vários livros publicados , entre eles : Autor de Publicidade em Cordel (São Paulo: Maltese, 1994);Madeira Matriz (São Paulo: Annablume, 1999); Patativa do Assaré (Fortaleza: FDR, 2000); Patativa Poeta Pássaro do Assaré (Fortaleza: Omni, 2002), Desenho Gráfico Popular (São Paulo: IEB/USP, 2000); dentre outros trabalhos acadêmicos. Tem artigos publicados em revistas do Brasil e do exterior. Como ficcionista, publicouPluralia Tantum (Fortaleza: Grecel, 1973); Parabelum (Fortaleza: Greel, 1977);Queima de Arquivo (Fortaleza: Secult, 1983); Resto de Munição (Fortaleza: Secult, 1984); Buick Frenesi (Fortaleza: Secult, 1985); e Pequenas Histórias de Crueldade(Fortaleza: Secult, 1987),entre outros. Deixa a ficção em 1987 e parte para edições com ampla pesquisa de cunho nordestino.Apaixonado pela cultura regionalista , nunca deixou de lado a preocupação com o contexto histórico-político-social do Brasil.
Autor prolífico, Gilmar de Carvalho ficou mais conhecido por sua não-ficção "Parabélum" que é a publicação mais famosa de sua fase literária. Em 2011, faz o relançamento .Precisava recuperar sua obra mais preciosa. Conta que ao procurar o livro, não encontrara mais nem em sebos e desejava muito que outras pessoas tivessem acesso ao livro. Como nota do escritor paulista João Silvério Trevisan na apresentação, o título reproduz a pistola de Lampião, uma parabelum 97. A inscrição vem de um provérbio latino: si vis pacem, para bellum (“se queres a paz, prepara a guerra”). Nas mãos de Gilmar, a arma não destrói. Lançando agora, apenas constrói. .
Incansável pesquisador , lança agora seu mais recente trabalho: "A lira do poeta Expedito" dedicado ao poeta Expedito Sebastião da Silva, ele mesmo um tipografo, responsável pela casa São Francisco que imprimiu, dentre outros autores, o canônico Patativa do Assaré.
Incansável pesquisador , lança agora seu mais recente trabalho: "A lira do poeta Expedito" dedicado ao poeta Expedito Sebastião da Silva, ele mesmo um tipografo, responsável pela casa São Francisco que imprimiu, dentre outros autores, o canônico Patativa do Assaré.
Fontes:
Diário do Nordeste; armazemcultura.com; www.onordeste.com ; martinsfontespaulista.com
Diário do Nordeste; armazemcultura.com; www.onordeste.com ; martinsfontespaulista.com